sociedade

Um menino de presente


Naquele tempo, mal sabia que os festejos natalinos originaram-se nas festas pagãs que celebravam a colheita. Desconhecia também que os romanos realizavam, na mesma época, uma festa dedicada ao deus Sol Invictus ou que, no calendário cristão, as comemorações de Natal foram introduzidas no século IV pelo Imperador Constantino, após o fim das perseguições.

Sabia que o Natal se aproximava pelas propagandas veiculadas na Imembuí e pelo ritmo frenético de limpeza que acometia minha mãe, que além de dar conta dos "lavados" (lavar, secar, engomar e passar roupas), mergulhava numa crise sem precedentes de limpeza; crise essa que surgia como um dos preparativos para o Natal.

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Morávamos numa casa de madeira, em estilo alemão, a qual tinha janelas, portas e paredes cuidadosamente lavadas. Depois dessa faxina, não sobrava uma teia pra contar história. No chão passávamos um óleo cozido, que dava uma cor escura e brilhante ao assoalho, pois cera, naquela época, era uma ilustre desconhecida.

Minha mãe vestia as cadeiras da sala com capas brancas, costuradas por ela, a partir de sacos de açúcar, devidamente alvejados, quarados e engomados. Enganavam bem: pareciam ser de linho! Quando chegavam visitas, as pessoas se sentiam constrangidas, negando-se a se sentarem, evitando amassar ou sujar aquelas relíquias. Nos móveis simples, minha mãe expunha suas habilidades em crochê: toalhas, guardanapos, cortinas. Lembro com saudades de uma cortina de crochê da janela da sala: representava um anjo tocando uma corneta. Tudo artes de Dona Lucília. No ar, o perfume das flores e folhagens nos vasos. A casa cheirando a limpeza, afinal, era Natal. Faltavam os vidros lotados de merenguinhos, preparados com amendoim moído, uma gostosura. À noite, reuníamos em volta do fogão à lenha, enquanto minha irmã gêmea batia as claras em neve, em um prato fundo, eu cuidava do aquecimento do forno do fogão. A espera da fornada de merengues ficar pronta era preenchida com histórias sobre a vinda do Menino Jesus, a coragem de Maria ou a fuga para o Egito. Para mim, a Sagrada Família era referência.

Foto: Pixabay/

Naquela noite, estávamos reunidos para mais um serão. Os merengues e outros quitutes estavam prontos e o serão teve um tom forte de espiritualidade. Ouvimos a leitura de um trecho do Evangelho Segundo o Espiritismo, rezamos, quando meu pai, um tanto emocionado confessou que não teríamos presentes de Natal, porque ele estava sem trabalhar há alguns dias, em virtude da greve dos ferroviários. E meu pai era mensageiro, carregava as bagagens dos passageiros que daqui partiam. Se não houvesse passageiros, não havia pagamento. O fato de não ter presente, não reverberou em nós. Quando acabasse a greve, ele prometeu nos levar no Posto do MEC, que ficava na Rua Riachuelo, para comprarmos os pacotes de cadernos e material escolar que precisaríamos para o ano seguinte. Com imenso sorriso, pensando no presente que logo receberíamos, fomos dormir, não sem antes entoarmos algumas canções natalinas, enquanto Dona Lucília confiante afirmava que Jesus Menino nos visitaria.

No dia seguinte, minha mãe estava em frente à nossa casa estendendo algumas roupas, que precisariam ser entregues ainda naquela tarde. De repente, ela começou a chamar-nos:
- Venham cá! Venham ver! Não disse que ele viria? Foi Jesus, que enviou! 

Ao chegar à porta, encontrei-a transpirando alegria, com uma criança nos braços. Era um bebê lindo, pele negra, cabelos crespos, que sorria, como se me conhecesse. E Dona Lucília foi explicando: a mãe do Davi mora na Vila Leste e está com outro filhinho internado na Casa de Saúde. Precisa voltar em casa, duas vezes por dia, para amamentar esse menino. Ontem, quando ela passou, me ofereci a ficar com o garoto, contando que vocês me auxiliem. Ele vai ficar aqui conosco, até seu irmãozinho sair do hospital. Nem bem ela terminou de falar, eu e minha irmã, nos jogamos sobre Davi, que para nós, era o menino Jesus nos visitando.

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